Por Manoela Sawitzki
Uma amizade construída a partir do encontro de diferenças e situações cotidianas envolvendo pessoas comuns e suas contradições compõem o centro disparador de “Eufrates”, sexto romance do escritor André de Leones. Jonas e Moshe são os personagens centrais dessa teia narrativa que transita e se multiplica por diferentes tempos e espaços. Ao longo do percurso, relações amorosas começam e se desfazem, afetos se transformam, laços familiares são esmiuçados, o sexo, a morte, tudo desliza e se deixa ver para que o leitor chegue até o mais íntimo de cada um.
“Eufrates” traz os percursos de pessoas comuns. Conflitos familiares, perdas, encontros e separações, amigos que ficam para trás, outros que se mantém — um registro da vida que segue, e ela raramente segue de modo linear. Pode-se dizer que as pessoas comuns formam um campo de investigação que atravessa todos os teus livros? O que te atrai para esse tipo específico?
Sim, as pessoas comuns e a vivência ordinária, por assim dizer, são coisas que me atraem. Eu não saberia dizer de onde vem isso. Talvez porque eu goste de prestar atenção nos outros, nas mínimas coisas que fazem e dizem, nos lugares onde vivem, e por aí afora. Daí que, ao escrever, seja esse tipo de detalhe que me venha à cabeça. Os gestos, o ritmo da fala, os lugares que frequentam, o que comem e bebem, o que permitem entrever de si etc. Mesmo ao escrever um romance pós-apocalíptico (Dentes negros), procurei me deter em algumas situações cotidianas, não obstante o caos circundante e a violência que irrompia aqui e ali.
O romance começa com o “itinerário”, uma espécie de plano de viagem ao longo do tempo e do espaço. O percurso começa em 1999 e vai até 2013, passa pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belém, Buenos Aires e Jerusalém. Você pode falar sobre a escolha desses recortes?
Quando comecei a esboçar Eufrates, tinha em mente um tipo específico de estruturação com a qual já havia lidado em dois romances anteriores, Como desaparecer completamente e Terra de casas vazias. Gosto dessas narrativas dispersas, com vários personagens e histórias correndo paralelas e convergindo aqui e ali. Gosto da ideia de acompanhar esses personagens, criando recortes de suas vidas, às vezes espelhando determinadas situações, sugerindo uma vivência comum ou pelo menos traduzível de um para o outro. Gosto de explorar a “qualidade narrativa” dessas vidas. O lance com as cidades tem a ver com a minha própria vivência. Não conseguiria situar uma história em lugares que não conheço bem. E meus personagens se fazem também e na medida em que palmilham por aí, e os espaços que frequentam dizem muito de cada um deles, são ferramentas que utilizo para desenvolvê-los e, em alguns momentos (Jonas em Buenos Aires, Moshe em Israel), estranhá-los.
A amizade é um dos temas fortes do livro. Borges disse numa entrevista a Osvaldo Ferrari que, diferente da amizade, o amor é um “relacionamento vulnerável” porque exige muitas e constantes confirmações. A amizade entre os personagens centrais, Jonas e Moshe, seria para você um ponto de equilíbrio, o dado que se mantém enquanto as vidas dos dois passam por mudanças? Você concebeu esse encontro para que ele operasse mais como ancoragem do que como chave para transformações?
A amizade masculina talvez seja um dos principais pontos de Eufrates. A ideia de que duas pessoas tão diferentes possam se apoiar em meio às vicissitudes afetivas e familiares. Mas também me interessou explorar suas diferenças. Por exemplo, quanto à orfandade: Jonas perde os pais de forma “natural”, ao passo que a mãe de Moshe tem uma morte violentíssima. E os relacionamentos amorosos, até em função do temperamento de cada um, também exibem “curvas” distintas. A maneira como lidam consigo e com os outros (e aqui incluo o pai de Moshe, outro personagem importante nesse itinerário) é um dos fios que compõem a narrativa.
Outro ponto importante é o das relações familiares que se ramificam a partir dos dois. Como as relações amorosas, estas também costumam ser mais exigentes e acirradas, não é? Há sobretudo a curva afetiva da relação entre Moshe e o pai, Miguel. Existiu algum (ou vários) modelo ficcional ou real para os dois?
Não houve nenhum modelo, isto é, os personagens não se baseiam em ninguém que eu tenha conhecido. A postura de Moshe reflete a perda traumática da mãe e a raiva que advém daí. A raiva, claro, é anterior à perda (o divórcio, as atitudes do pai), e o que me animou foi desenvolver um personagem que se colocasse assim agressivamente. Muitos de nós vivemos ou experimentamos em algum momento essa radicalização afetiva, esse investimento agressivo numa solidão que parece incontornável. Em um certo sentido, Moshe é “parente” de Jean, personagem de Hoje está um dia morto, mas, por sorte, e também graças à amizade de Jonas, não chega àqueles extremos. Não afirmo que ele é “salvo” pela amizade, até porque ainda tem um longo caminho a percorrer (mesmo após se reaproximar do pai), mas gosto de pensar que a aceitação do outro passa pela aceitação de si, e Eufrates também é sobre isso.
Sobre essa aceitação, ela passa sobretudo pela falha, pela constatação da falha como dado comum, não? A falha seria um ponto de aproximação não apenas de Miguel e Moshe, aos poucos, com tempo e vida passados, mas também entre os protagonistas? Esse seria outro traço importante da amizade, certo? A constatação recorrente de que o outro “é assim”, e você pode discordar dessa forma de ser, de estar na vida, mas a aceitação prevalece.
Sim, creio que passa exatamente por aí. E acho importante criar um espaço para esse tipo de aceitação (de si, do outro), ou melhor, criar uma narrativa onde tal aceitação é importante, pois o que vejo ao redor é justamente um recrudescimento da irascibilidade. Em vez de reconhecer e compreender a alteridade, muitos de nós tratamos de negá-la terminantemente, quando não a atacamos e até mesmo recusamos o direito do outrem ser o que e como é. Quis que Moshe e Jonas fossem semelhantes (brancos, heterossexuais, classe média) até para criar esse primeiro espaço de aceitação em um ambiente mais familiar para ambos. Aceitando a si mesmo, ao pai e ao melhor amigo, torna-se possível para Moshe, por exemplo, aceitar o que não é tão imediato ou próximo. Acho que no Brasil não temos, nunca tivemos, uma vivência democrática propriamente dita, pois a maioria de nós não consegue sair daquele primeiro espaço de aceitação, e muitas vezes sequer consegue criar tal espaço.
Esse é o sexto romance que publica. De que forma você percebe que esse itinerário como escritor (foram muitos livros, uma mudança de cidade…) tem afetado/alterado tua escrita e, especificamente, a desse livro?
Várias mudanças de cidade, na verdade. Brasília, Jerusalém, São Paulo. Eufrates atravessa boa parte dessa vivência porque surgiu de narrativas, fragmentos e ideias que esbocei no decorrer de doze anos, mais ou menos. Assim, há nele desde o tom agressivo de Hoje está um dia morto, meu romance de estreia, até a aridez de Abaixo do Paraíso. O desafio foi criar um chão comum para essas alternâncias de tom e abordagem, e a resposta, como sempre, está nos personagens, em me deixar levar por eles e permitir que o romance assuma esse caráter multifacetado, desde os temas até os ritmos, mas sempre retornando a determinadas estruturas e fraseados que dão unidade ao todo. Claro que a ideia de estruturar um romance a partir daquelas narrativas e “b-sides” só me ocorreu há menos tempo, mas, ao reescrevê-las tendo em mente o projeto final, pude observar como a forma com que lido com o material ficcional mudou desde os meus primeiros esforços. Acho que o meu “ouvido” melhorou, acho que o estilo ficou mais compassado, acho que o tom está menos agudo. Com isso, pude estabelecer aquele chão comum de que falei; mesmo saltando aqui e ali, volto a ele sempre que necessário, e o romance adquire uma melodia reconhecível, uma “cor” recorrente e perceptível desde a forma como as frases são construídas.
Quando e por quanto tempo você viveu em Jerusalém? Essa mudança teve alguma ligação com “Eufrates”? Os acontecimentos em torno da morte da mãe de Moshe derivam dessa passagem pela cidade? Pra você, como a viagem, de modo geral, interfere e atua na escrita?
Vivi em Jerusalém por alguns meses, em meados de 2009. Minha estadia influiu mais diretamente na escrita de Terra de casas vazias, até porque é um romance que comecei a escrever quando ainda estava lá. As viagens por certo alimentam bastante o meu processo criativo, seja pela vivência direta, seja pela observação, pelas histórias que ouço e a partir das quais imagino outras histórias. Prestei bastante atenção ao que as pessoas me contavam em Israel, às maneiras como se referiam (ou não; há quem prefira silenciar) às próprias experiências, inclusive no que diz respeito à perda de amigos e parentes em circunstâncias violentas. Aquela é uma região conflagrada, assim como o Brasil – embora as diferenças sejam enormes e óbvias, a violência é algo muito presente, tanto aqui como lá.
A curva temporal do romance acaba em 2013, um ano marcado por acontecimentos políticos e sociais determinantes para o curso atual do país. Durante as manifestações de 2013, como todos sabemos, houve um breve mas intenso protagonismo social, multidões de pessoas comuns, que não eram engajadas politicamente, não integravam movimentos sociais, sindicados, partidos foram para as ruas com reivindicações de todos os tipos. Mas entre as personagens de “Eufrates”, em menor e maior grau de intensidade, encontramos certo distanciamento em relação a esses movimentos. Foi por um desejo deliberado de se afastar de um discurso político ou engajado que eles ocupam essa posição? Por quê?
Em 2013, em meio à efervescência que você descreveu, conheci muitas pessoas que se mantinham à margem do que acontecia nas ruas. Eram desde indivíduos decepcionados com os rumos de um determinado partido (como Jonas) até cidadãos que, por diversas razões, achavam que as manifestações não levariam a nada que prestasse (como Moshe). Ao escrever Eufrates, tomei a decisão de explorar esses personagens “marginais” não porque quisesse fugir ao debate político ou, melhor dizendo, politizado (ele está lá, ainda que muitas vezes implicitamente), mas porque a psicologia deles me interessava. Em relação a isso, Jonas tem uma trajetória bem delineada, e Moshe, bem, o diálogo dele com o pai (na última parte) procura explicitar um alheamento que, embora filosoficamente consequente, dá bem a medida da nossa miséria conceitual e, por decorrência, ideológica. Ademais, tenho horror a narrativas panfletárias e “engajadas”, e já explorei frontalmente a engrenagem política em Abaixo do Paraíso, cujo protagonista é alguém envolvido no cotidiano criminoso de nossa República.
As primeiras anotações para “Eufrates” foram feitas cerca de cinco anos atrás, certo? Depois veio outro livro, “Abaixo do Paraíso”, e você disse que há uma ligação entre eles, que “Eufrates” seria um desdobramento do livro anterior. Como eles estão ligados?
Há trechos de Eufrates que nasceram de coisas que escrevi há mais de uma década, mas as primeiras anotações sobre esse romance são, de fato, mais recentes. Mas, na verdade, da forma como ficou, não há ligação entre Abaixo do Paraíso e Eufrates. A ligação seria justamente o trecho que cortei na revisão final, no qual alguns personagens de Abaixo compareciam. Cortei porque era muito longo (duzentas páginas) e tornaria Eufrates ainda mais disperso, além de anular a dinâmica Moshe-Jonas que responde pela espinha dorsal do romance.
Essas duzentas páginas estarão em outro livro?
Talvez. Elas poderiam integrar uma possível sequência de Abaixo do Paraíso. Tenho muitas coisas anotadas e esboçadas, mas ainda não sei o que farei a seguir. O bacana de manter cadernos e mais cadernos repletos de anotações é que as ideias nunca se perdem. Eufrates que o diga. Volta e meia retomo velhas ideias e brinco com elas um pouco, depois deixo de lado, parto para outra coisa. Fico fazendo isso até ser “fisgado” por algum projeto específico, por uma história que, naquele momento, pareça a coisa “certa” a ser desenvolvida. O importante é ficar atento e, por assim dizer, atender à “convocação”.