“Quelé, a voz da cor: Biografia de Clementina de Jesus”

30/01/2017 4781 visualizações

Pedro Paulo Malta

“Em nossos ouvidos mal-acostumados pela seda e pelo veludo produzidos pelos cantores da época, a voz de Clementina penetrou como uma navalha”, escreveu certa vez o jornalista e musicólogo Ary Vasconcelos. “A ferida ainda está aberta e sangra, mas isso é saudável: serve para nos lembrar que a África permanece viva entre nós.”

A história por trás da “voz de navalha” que surgiu na década de 1960 e se tornou símbolo de brasilidade em pleno reinado da bossa nova e do iê-iê-iê é o tema da biografia: “Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus”, livro que resulta do trabalho incansável e minucioso de quatro autores: Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz. Uma obra surgida como trabalho de conclusão do quarteto no curso de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo e que, além da nota máxima pela banca avaliadora, valeu a eles premiações como uma da própria universidade e duas da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação. A pesquisa se estendeu e durou seis anos até virar livro.

O reconhecimento dos primeiros leitores não foi sem razão. Através do livro, a trajetória de Clementina de Jesus vai muito além da história que invariavelmente se repete nas fontes tradicionais: da empregada doméstica que se transformou em cantora aos 64 anos de idade e gravou sucessos como “Marinheiro só” (do repertório tradicional). A obra também passa a limpo o ano de nascimento da cantora – 1901 e não 1902 (como informa a maioria das fontes) – e nos leva ao início do século XX na cidade de Valença (RJ), onde começa a saga da menina Quelé, filha dos escravos libertos Amélia Laura e Paulo Baptista dos Santos. A história nos leva ao Rio de Janeiro, onde a pequena vai morar aos sete anos e terá as primeiras experiências como cantora (no pastoril de João Cartolinha) e sambista – primeiro na escola de samba Unidos do Riachuelo e, depois, na Portela.

E sabe-se que foi numa festa de São João em 1938 que Clementina cruzou os primeiros olhares com o ferroviário (depois estivador) Albino Pé Grande, com quem se casa e por quem se converte ao verde-e-rosa da Estação Primeira de Mangueira. E que era no Grajaú que ela ganhava a vida como doméstica até encontrar, na antiga Taberna da Glória, o personagem decisivo para o início de sua vida artística, o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho, que fará de Quelé a figura central do samba que se revigora em meados dos anos 60, através de espetáculos como o emblemático “Rosa de ouro” (1965), produção de Hermínio que apresenta também os jovens Paulinho da Viola e Elton Medeiros.

“Ela é minha melhor obra, melhor que meus sambas e poemas”, escreve Hermínio, que será o produtor da maior parte da discografia impecável gravada pela cantora até a década de 1980. Período em que Clementina faz valer sua condição de “mulúduri” (herdeira da ancestralidade) e atua como uma autêntica “griô” (transmissora desta herança), levando sua voz ancestral a tudo que é canto: das concorridas Noitadas de Samba do Teatro Opinião ao Perdidos na Noite (programa de TV apresentado por Fausto Silva), do Festival de Arte Negra em Dacar (Senegal) ao badalado Festival de Cannes (no Sul da França), onde canta a “Marselhesa” e troca mimos e elogios com a diva Sophia Loren.

Sua morte, aos 86 anos, pobre como a maioria de seu povo, nos faz voltar à realidade. Felizmente, permanecem sua arte e memórias como as que estão contadas em “Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus”. Livro que, na contramão de um famoso ditado africano (“Toda vez que morre um velho, é uma biblioteca que vai embora”), mantém viva e afiada a “voz de navalha” que não nos deixa esquecer de nossas raízes.

Leia abaixo entrevista respondida pelos quatro autores.


Pergunta: “Quelé, a voz da cor” é um livro escrito a oito mãos: como se deu a divisão de trabalho entre vocês?

Resposta: Primeiramente, como manda o figurino de toda biografia, despendemos um enorme tempo indo atrás de toda a bibliografia disponível: jornais, revistas e livros. Foi um processo que começou lá atrás, ainda em 2011, e durou todo esse tempo, afinal nunca era tarde para adquirirmos novas informações sobre a biografada. Os quatro se envolveram nisso, inclusive na realização de uma cronologia com tudo o que foi sendo colhido para nortear o trabalho. Concomitantemente, fomos entrevistando os personagens importantes do livro. A partir daí, começamos a estruturar como seria traçada toda a história. Fomos escolhendo quais contextualizações históricas, temas, personagens e tramas poderiam ser aproveitados em cada capítulo. Nesse processo, Raquel Munhoz e Janaína Marquesini dedicaram atenção especial e abriram caminho para que ao longo destes seis anos pudéssemos reunir um vasto material, inclusive de cópias de jornais da época do Rio, aproveitando-o da melhor forma. Inclusive, as duas tiveram, em 2015, a ideia de espalhar pela Zona Norte do Rio de Janeiro cartazes e cartões para que a população local pudesse ajudar de alguma forma com informações sobre Dona Glorinha, a patroa de Clementina de Jesus no bairro do Grajaú por mais de 20 anos. Esta iniciativa foi a primeira que efetivamente chamou atenção de público e parte da imprensa para o trabalho de biografia que estava ali tomando forma.

Depois disso, fizemos a divisão dos capítulos baseados no trabalho de conclusão de curso de jornalismo, e “despejamos” toda a informação colhida já no campo de texto, para que guiasse o trabalho posterior. Feito isso, era hora de deixar as informações mais limpas e consistentes. Nessa etapa, muitas informações duvidosas foram sendo descartadas, como declarações divergentes em entrevistas da própria biografada. Raquel era a responsável por confirmar informação por informação a partir de dados de jornais e de todo o material colhido. Janaína e Luana Costa escreviam o texto, dando uma primeira mão, já com as informações colocadas nos capítulos. E Felipe Castro era quem dava a última mão, finalizando o texto e editando-o, oferecendo ritmo à narrativa e conferindo ao trabalho a cara mais jornalística que certamente o caracteriza.

Podemos dizer que o livro foi escrito sim a oito mãos, porque realizamos este processo inteiro reunidos na mesma casa, debatendo cada informação duvidosa. Tudo isso foi feito cumprindo um cronograma de trabalho com datas pré-estabelecidas para que cada capítulo fosse finalizado. Há que se lembrar, também, que os quatro autores conciliaram a dedicação pelo livro com uma carga exaustiva de trabalho de jornalistas em início de carreira e isso dificultou as coisas, pois de 2015 para cá tivemos que dedicar todos os finais de semana ao processo de elaboração do texto. Mas rendeu o resultado que esperávamos.

P: A orelha do livro assinala que quando Clementina de Jesus morreu alguns dos autores do livro ainda não eram nascidos. Como foi que essa personagem despertou o interesse de vocês – jovens, brancos e moradores de uma São Paulo tão diferente da cidade de Valença, local de nascimento da biografada de vocês: contem um pouco de como foi início dos trabalhos deste livro.

R: De fato, nenhum dos autores testemunhou o sucesso de Clementina de Jesus enquanto ela era viva. A gênese desse livro é o álbum “O Canto dos Escravos” (1982), o último da carreira dela. A Janaína teve acesso ao álbum, ouviu, adorou e apresentou para os outros três colegas, que de alguma forma tinham envolvimento com cultura, ou pelo menos interesse pelo assunto. “Você já parou para ouvir ‘O Canto dos Escravos’? O álbum é maravilhoso!” Uma sintonia imediata se formou. No fim da atividade acadêmica, com o trabalho de conclusão de curso batendo à porta, não foi difícil definir um tema para a realização de um livro-reportagem, e nem os integrantes desse grupo. Mais do que falar apenas de “O Canto dos Escravos”, pensamos em retratar a carreira de Clementina, fazendo assim um resgate cultural significativo, e também ambicioso para jornalistas que sequer graduados eram.

A partir daí, começamos uma longa busca pela trajetória de Quelé e descobrimos que era uma cantora com muitos “pontos em branco” em sua vida, com muita coisa sobre ela jamais publicada ou sequer pesquisada a fundo. Notamos que nenhum livro havia sido escrito sobre ela, a não ser uma publicação não-comercial da Funarte em 1988 e uma coletânea de artigos feita por Heron Coelho em 2001. E qual não foi nossa surpresa ao ver que tínhamos em mão um personagem interessante e intrigante? Mulher negra, pobre, de voz potente e rouca e que só começou a carreira aos 63 anos de idade, produzida por ninguém mais ninguém menos que Hermínio Bello de Carvalho. Era animador.

O tema do trabalho de conclusão de curso foi recusado diversas vezes na Universidade Metodista de São Paulo. É que os professores temiam que a pesquisa se frustrasse e ficasse emperrada por falta de informações, e por isso sugeriram mudança. Contrariados, batemos o pé e insistimos no tema, enquanto avançávamos com uma pré-pesquisa que indicava que, sim, havia um ponto de partida e substância suficiente para realizar o livro-reportagem acadêmico. Enquanto a aprovação não saía, localizamos um documentário audiovisual tendo como objeto central Clementina e lançado naquele mesmo ano de 2011 pelo diretor paulista Werinton Kermes, o “Rainha Quelé”. Ali já consumamos nossa primeira entrevista. Nesse meio tempo, os professores e até mesmo outros membros do corpo docente e da reitoria aprovaram, enfim, o tema do livro. Após um ano de produção, entregamos o trabalho com mais de 30 entrevistas e 164 páginas retratando a obra e o legado da cantora. Passou com nota máxima na banca avaliadora, que teve como convidado o jornalista e biógrafo de Hermínio Bello de Carvalho, Alexandre Pavan, e ganhou prêmio interno na universidade e dois prêmios acadêmicos de peso, um regional e outro nacional pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

Como o projeto experimental ganhou visibilidade no meio cultural, algumas entrevistas importantes foram sendo agendadas para continuar a produção do livro depois da universidade. E assim começamos a reunir mais materiais para transformar aquele projeto acadêmico em uma biografia completa – foram incontáveis idas ao Rio e muito material colhido, fazendo com que nosso “acervo” aumentasse significativamente de tamanho na comparação com a pesquisa do TCC. Nessa etapa, começamos timidamente a buscar editoras, ao passo que também fomos procurados por algumas. Em comum, nenhuma tinha cobertura e distribuição nacional. Isso não nos agradava.

Tivemos uma luz ao ver publicada a biografia de Assis Valente, feita por Gonçalo Júnior. A editora era a Civilização Brasileira, do Grupo Editorial Record. Pensamos que se um selo retratou alguém como Assis, ajudando a preservar sua memória, com certeza se interessaria pela nossa personagem. Foi aí que entramos em contato com a Record. Em uma viagem ao Rio, conversamos com a Andreia Amaral que, para a nossa surpresa, abraçou com toda a força a missão de publicar nossa biografia. Dessa vez em uma editora grande e com distribuição nacional. Não era para menos!

P: Um dos pontos fortes de “Quelé, a voz da cor” é a pesquisa nos periódicos antigos, através dos quais acompanhamos a própria Clementina contando passagens sua vida, artística ou pessoal. Falem um pouco dessa pesquisa.

R: São seis anos, cerca de 600 edições de jornais impressos consultados, fora as que estão apenas em nuvem (online); horas e horas de MIS (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro), entrevistas, conversas que não foram documentadas (com pessoas que não configuram exatamente um entrevistado, mas abriram portas e caminhos fundamentais), idas ao arquivo público; cerca de 40 viagens somando Rio de Janeiro, Valença, Brasília, Diamantina, Ouro Preto (para onde fomos receber o prêmio regional acadêmico supracitado) e Fortaleza (prêmio nacional). Gastos incontáveis com hospedagem, transporte, alimentação, impressões, livros, discos e documentários.

Um dos momentos mais especiais do processo de pesquisa foi a visita ao cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, onde descansam os restos de Clementina. O seu túmulo estava negligentemente identificado apenas com um número e nos sensibilizamos com isso a ponto de mandarmos fazer uma placa de identificação com a foto de Clementina e os dizeres “Que Nossa Senhora da Conceição lhe acompanhe”.

Também foi muito importante e gratificante para nós o contato com artistas consagrados da música brasileira. Entre eles, o mais importante foi o próprio Hermínio Bello de Carvalho que, em um primeiro momento, resistiu a nos conceder entrevista sobre Clementina. Depois de muita insistência, nos cedeu não só declarações, histórias e causos maravilhosos como abriu as portas de seu apartamento em Botafogo para todos nós e ajudou muito a desbravar o caminho da biografia.

P: E entre os depoimentos colhidos para o livro: qual ou quais os mais marcantes?

R: Raquel: Depois da primeira entrevista de Hermínio, fomos conversar com o amigo dele Leo Castilho, também presente no dia em que foram finalmente apresentados a Quelé. A forma como Leo narra o encontro, objeto do primeiro capítulo, é emocionante. Também tivemos grandes entrevistas com riquezas de detalhes jamais antes revelados, como a de Paulinho da Viola (primeiros shows de Clementina -O Menestrel e Rosa de Ouro), Caetano Veloso e sua admiração por Quelé “Ela é a voz brasileira que traz toda a história da escravização de negros africanos e o anúncio da Segunda Abolição”, Milton Nascimento e Naná Vasconcelos.

Janaína: Pra mim as mais marcantes foram de Naná Vasconcelos, que me emocionou muito quando disse que “Clementina é a prova de que a África é a espinha dorsal da nossa cultura”. Estar frente a frente com Milton Nascimento e ver a admiração que ele tinha por ela também foi de arrepiar. E Elton Medeiros que nos deu mais de uma entrevista nas quais esmiuçou detalhes de shows e da convivência com Clementina. Além das inúmeras entrevistas com Hermínio que com o passar dos anos foram virando longas e descontraídas conversas sobre a Mãe Quelé.

Luana: O que mais me emociona é ver que artistas como Milton Nascimento e Beth Carvalho abriram suas portas para nós quando falamos de Clementina. O que me emociona é a forma respeitosa que estes artistas mencionam Quelé, como uma pessoa que os inspirou e que refletiu diretamente na carreira deles.

Felipe:  Me marcou muito uma entrevista com o compositor Paulo César Pinheiro em sua casa nas Laranjeiras, no Rio. Paulo César foi companheiro de Clara Nunes, parceira inconfundível de Quelé. Me arrepiou ouvi-lo narrando como uma “senhora idosa, capengando, de bengala, pisava no palco” e se transformava, nas palavras dele, “em uma entidade”.

P: No meio da história que é contada no livro, dá-se o sucesso repentino de uma mulher sexagenária, negra e pobre que trabalhava como empregada doméstica numa casa de família até “virar” cantora, ainda por cima cantando fora dos padrões dos anos 60 (fossem esses padrões os da bossa nova ou do rock). Uma história bastante improvável ainda nos dias atuais… Ou vocês acham que esse tipo de história se tornou mais frequente depois de Clementina?

R: Pelo contrário. Com a indústria fonográfica querendo praticamente só vender, poucos produtores têm um olhar atento às joias como Clementina. Costumamos dizer que não existem muitos Hermínios por aí, mas muitas Clementinas. E dedicamos o livro a todas elas.

P: Mesmo com todo o sucesso, os discos, shows e a aclamação da crítica, Clementina de Jesus morreu pobre. O que faltou para um final feliz?

R: Faltou o que ainda falta no Brasil: oportunidades para o povo pobre, negro e da periferia. Infelizmente, as oportunidades são diferentes para quem nasce e cresce na periferia brasileira, herança de um país escravocrata. E, para Quelé, não foi diferente. São poucas joias que têm a sorte de serem lapidadas por corações grandiosos como o do Hermínio Bello de Carvalho. Também faltou regulamentação das leis trabalhistas para a classe artística, garantindo melhores condições para que Clementina se aposentasse com dignidade.