“Tudo ou nada”, de Malu Gaspar

4/09/2015 2304 visualizações

Por Cláudia Lamego

No próximo dia 5 de setembro, a jornalista Malu Gaspar participa da mesa “Livros-caixa: a literatura de negócios”, no Café Literário, da Bienal Internacional do Livro. Autora de Tudo ou nada – Eike Batista e a verdadeira história do Grupo X, Malu conta nesta entrevista como foi a produção da obra, comenta a fragilidade dos órgãos de fiscalização do mercado financeiro e da economia brasileira e fala sobre as principais revelações do livro, como documentos que mostram que Eike foi alertado sobre os dados fantasiosos de suas empresas que divulgava ao mercado. O livro, lançado no fim de 2014 e já na 5ª edição, teve seus direitos comprados pela produtora Mariza Leão e vai virar filme em 2016.

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Você cobriu, como jornalista, durante oito anos as empresas do grupo de Eike Batista. Por que decidiu escrever o livro?

Acompanhei  a trajetória de Eike e de seu grupo, primeiro como chefe da sucursal de EXAME no Rio de Janeiro e, depois, como editora de VEJA. Vi de muito perto  o grupo X ascender ao topo do capitalismo brasileiro. Conheci seus executivos, acompanhei os momentos de tensão e glória, o surgimento das primeiras dificuldades e das rivalidades fratricidas. Via como aqueles homens admiravam Eike e como contavam suas histórias com orgulho – e pude perceber como as divergências foram se acirrando ao longo do tempo. Nas conversas frequentes que tínhamos, ouvia muitas histórias a respeito da vida de Eike, sobre seus métodos de gestão e a forma como ele tomava decisões. Sempre me impressionou o tamanho da ambição e a grande quantidade de projetos e planos que suas empresas cultivavam, assim como a facilidade que tinha de convencer o mercado e o público sobre sua capacidade de executá-los. Sabia, de início mais por fontes de fora do grupo, que muitos não eram factíveis.  Fiquei  preocupada quando  vi a bolha X se formando e logo passei a buscar as  pistas de que ela estava prestes a estourar. Escrevi ou editei muitas reportagens sobre as empresas X, e nunca joguei fora nenhuma anotação. Quando ficou claro que o império formado por Eike estava prestes a desmoronar, em setembro de 2012  – ocasião em que fiz uma matéria a respeito para a VEJA – comecei a pensar em escrever um livro. Eu sabia que havia muitas histórias não contadas sobre aquela ascensão e que haveria mais ainda sobre os bastidores da queda.  Eu conhecia um enredo de que a grande maioria das pessoas não tinha ideia, e que poderia contar com riqueza de detalhes. Era um desafio e tanto, que na prática se provou  ainda mais fascinante.

Tudo ou nada traz muitos detalhes de operações importantes, reuniões estratégicas, conferências, viagens, enfim, reúne informações preciosas sobre a história do grupo X. Como foi seu processo de trabalho? Você já tinha um arquivo organizado do grupo? Quanto tempo durou a apuração para o livro propriamente dita?

Apesar de ter pensado no assunto por vários meses, comecei de fato a trabalhar no livro, com método e plano de trabalho, em junho de 2013, quando assinei contrato com a Record. Passei, então, a revisar todos os cadernos de anotações acumulados e a procurar todas as pessoas de alguma forma relacionadas às empresas X para pedir que colaborassem. Ouvi alguns nãos e muitos sims. Àquela altura, já havia muita gente disposta a falar. Entre aqueles que conheciam razoavelmente bem o grupo X, era unânime que a falência era inevitável. E todos, por um motivo ou por outro, acreditavam que a verdadeira história daquela saga empresarial tinha de ser contada. Assim, passei a reunir horas e horas de entrevistas, inúmeras fotos e documentos inéditos. No processo, ouvi confissões, testemunhei momentos de saudosismo, reminiscências alegres, presenciei acessos de choro e declarações carregadas de mágoa.  À medida que o trabalho avançava, fui procurando novas fontes, checando informações e colhendo mais depoimentos e detalhes.  Ouvi, ao todo, 105 pessoas, boa parte delas em longas entrevistas, algumas uma única vez. Houve gente com quem falei apenas por email, outros só por telefone. A partir de janeiro de 2014, comecei a dar forma ao texto final. Contei com pouco mais de quatro meses de período sabático, mas no resto do tempo toquei em paralelo o livro e o dia a dia de jornalista. Só coloquei o ponto final em outubro passado. Tive a ajuda de três pesquisadores e uma checadora, que se dedicaram de forma admirável ao projeto.

 

O livro começa com o relato, que parece atual, sobre a reunião que selou a derrocada de Eike no Canadá, quando a TVX passou para as mãos de outros empresários e ele “faliu”. A história desse fracasso do empresário não era conhecida da imprensa e dos empresários, banqueiros e políticos que apostaram no sucesso do grupo X? 

Quando ela aconteceu, entre 2000 e 2001, Eike não era um personagem tão relevante no Brasil – e o mercado canadense não era acompanhado de perto pelos brasileiros.  Depois, quando o grupo X começou a tomar forma, a história do fracasso canadense de Eike ficou encoberta por seu sucesso por aqui. Sabia-se que alguns de seus negócios não haviam dado certo, e ele mesmo fazia questão de ressaltar que havia aprendido muito com tais experiências. Nem mesmo seus executivos conheciam detalhes além do que ele próprio contava: que cometera o erro de investir em locais  sem tradição de respeito a contratos, com ambiente político tumultuado;  que confiara em governos duvidosos, e, por isso, se dera mal. Só com o passar dos anos, à medida que as fragilidades e problemas do grupo X foram se acumulando, comecei a ouvir, aqui e ali, relatos de que os governos grego, russo ou checo não haviam sido os únicos responsáveis pela queda de Eike em sua primeira encarnação empresarial. Sua derrocada final deixou evidente o quanto o enredo das duas ascensões e quedas eram semelhantes. Mais recentemente, a imprensa brasileira e a estrangeira chegaram a abordar o assunto. Tudo ou Nada acrescenta um relato mais completo e cheio de detalhes inéditos sobre essa fase da vida empresarial de Eike.

No livro, você fala que o momento da economia brasileira e o papel de protagonismo do país contribuíram para o sucesso da empreitada de Eike ao se tornar o oitavo homem mais rico do mundo. Sua derrocada também é um retrato de um momento mais difícil do Brasil e do Rio de Janeiro, em que a ilusão do desenvolvimento que os grandes eventos e investimentos externos trariam deu lugar a um certo choque de realidade?       

Sim,  embora não se deva pensar que o fracasso de Eike tenha de alguma forma provocado a crise. Acho que a história do Brasil e do grupo empresarial formado por ele foram beneficiados pela mesma maré de otimismo e liquidez financeira e prejudicados pelos mesmos vícios – falta de planejamento, otimismo exagerado, falta de transparência. A especialidade de Eike sempre foi surfar ondas, e ele surfou as três grandes ondas econômicas dos últimos anos –  a das commodities, a dos IPOs e a febre dos Brics, as principais economias emergentes do mundo. Ele sabia vender aos investidores o que eles queriam comprar e nunca hesitou em propagandear castelos de vento para convencer o mercado. Só não teve competência para transformar seus planos em realidade. Essa é também a história do Brasil, que prometeu ao mundo se transformar num país moderno, sofisticado, com infraestrutura poderosa e uma indústria competitiva. E até agora está devendo.

No livro, fica claro que no mercado financeiro há espaço para muita especulação e crimes, além de serem poucas e brandas as punições. O Brasil, que levou à cadeia recentemente políticos acusados de corrupção, ainda precisa evoluir muito para condenar pessoas por crimes financeiros?

Sem dúvida. Temos um órgão regulatório, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), extremamente carente de recursos técnicos e financeiros. Durante o período de elaboração do livro, tive bastante contato com a equipe da autarquia. Posso atestar que há ali funcionários dedicados, comprometidos com a ideia de um mercado justo e confiável. Eles, porém,  atuam em condições precárias e pautados por uma liderança tíbia. Um exemplo banal, mas simbólico: até hoje, uma grande parte dos processos da autarquia ainda está em papel.  As equipes são pequenas e presas a uma cultura burocrática, ao passo que o mercado financeiro é tão ágil e sofisticado como no resto do mundo.  Sobrecarregados, esses técnicos não conseguem dar conta de fiscalizar nosso mercado de capitais como seria desejável. O que é uma pena, porque isso desencoraja o investidor comum a aplicar mais do seu dinheiro na bolsa, financiando o crescimento das empresas.  O poupador médio se afasta porque tem a sensação de que, no Brasil, mercado financeiro ou é coisa de gente muito rica ou de especulador.

Você acredita que se o órgão fosse mais eficiente, poderia ter evitado as aberturas de capitais das empresas de Eike do modo como elas foram feitas, sem rastro na produção e com pareceres duvidosos sobre os seus reais potenciais?

Acredito que sim. Só em 2013, quando as empresas X entraram em crise, a CVM as transformou em prioridade. Desde então, vários crimes já foram apontados pela autarquia, em investigações de grande qualidade. Ou seja: quando quer, a CVM funciona. Nos primeiros anos, porém, não foram poucas as ocasiões em que as declarações irresponsáveis de Eike e seus executivos foram questionadas pela CVM, respondidas de forma mambembe e claramente insatisfatória, e ficou tudo por isso mesmo.

 Tenho certeza de que, num país com órgãos reguladores mais atentos, sofisticados e experientes, e com uma tradição de pouca tolerância a desvios, pelo menos parte dos prejuízos causados aos acionistas das empresas X teria sido evitada. Veja o exemplo da SEC, equivalente americana da CVM, que não aceita abertura de capital de empresas que não tenham um valor mínimo em ativos, e também recusa petroleiras ou mineradoras sem reservas provadas (coisas que a OGX não tinha). O órgão também tem uma equipe especializada em empresas de óleo e gás. E monitora de perto o uso do Twitter pelos acionistas e pelas empresas, para impedir que eles usem a rede para manipular o mercado. O Brasil não tem tais instrumentos, e foi justamente nessas brechas que a bolha da OGX se formou.

                  

Você acredita que, se Eike tivesse comprado, como era o objetivo primeiro, os poços do pré-sal, essa história poderia ter tido um final feliz?        

Essa pergunta é interessante porque, mesmo depois de ficar comprovado que Eike vendeu uma mentira ao mercado, ainda ouço muita gente dizer que a OGX só quebrou porque não tinha óleo. Claro que esse foi o fator preponderante, e é claro também que se ele tivesse adquirido os campos no pré-sal, a história teria sido bem diferente. Mas é difícil dizer que teria tido um final feliz. Eike e seu time realmente se prepararam para comprar blocos no entorno do pré-sal, numa estratégia baseada nas informações confidenciais que seu time trazia da Petrobras. Com a retirada dos blocos do leilão, tiveram de se contentar com áreas bem menos promissoras e gastaram muito dinheiro nisso, simplesmente porque não podiam demonstrar pessimismo ou timidez aos investidores. Só que, como o próprio livro mostra, as empresas X padeciam de diversos outros problemas – falta de métodos, processos, de planejamento, de eficiência na gestão. Explorar óleo no pré-sal é não apenas uma tarefa tecnicamente complexa, mas também extremamente cara, demanda capital intensivo.  Não acho que a empresa estava preparada para segurar o rojão do pré-sal e aposto que tais problemas teriam dificultado muito a trajetória da OGX. Se ela teria conseguido sobreviver ou não, porém, nunca saberemos.

O Eike que sobressai do livro é um sujeito mimado e com manias muito peculiares (como levar o cachorro para despachar com ele no escritório, acreditar em videntes e superstições variadas e manter dois carros na sala de casa). É um executivo passional, que ora infla o ego de seus comandados para num momento seguinte descartá-los, sem grandes amigos, com relacionamentos amorosos complexos e uma relação com o pai e os filhos muito delicada. Você acha que essa personalidade um tanto exótica contribuiu para o rumo que tomaram seus negócios?

Sim, claro. Eike tem um grande carisma, capacidade de liderança e um talento especial para vender seus projetos, atrair pessoas e mobilizar recursos. Mas vivia em conflito com seus executivos, administrava colocando uns contra os outros, subestimava as dificuldades que encontrava e sempre foi incapaz de manter o foco num único projeto, por mais complexo que ele fosse. Sua fé em elementos sobrenaturais, exotismos e superstições em geral contribuiu bastante para que ele se alienasse da realidade, acreditando sempre num “milagre” iminente, sem reagir de forma adequada aos problemas que surgiam.

Na introdução do livro, você diz que vai tentar responder se Eike é “um mentiroso compulsivo ou um empreendedor genial”, “um nacionalista empenhado no progresso do país ou um egocêntrico sem limites e sem moral”, “um homem à frente do seu tempo ou um estelionatário”.  Qual a sua opinião sobre ele?

Para mim, a grande força de Tudo ou Nada está justamente no fato de Eike ter uma personalidade tão controvertida que é difícil haver uma opinião unânime sobre ele. Não se trata de  um personagem binário e nem de uma história trivial de ascensão e queda, de modo que se pode formar vários retratos a partir do que se lê.

Eu mesma não conseguiria defini-lo num único aposto. Eike sofre, sim, de uma megalomania congênita, é egocêntrico e tem muita dificuldade em estabelecer relacionamentos profissionais duradouros – ao contrário do pai, que cultiva amizades da vida inteira e sempre pôde contar com a lealdade e a ajuda de seus ex-executivos. Em determinados momentos, é capaz de se alienar de tal forma da realidade que, por vezes, dá margem a ilações de que está fora de si e não sabia bem o que estava fazendo. Tanto que muitos até hoje o desculpam pelo que aconteceu, tachando-o de maluco ou ingênuo.

Não concordo. Deixo claro no livro que Eike sabia estar patrocinando uma mentira. O fato de ter ido à falência junto com suas empresas não o absolve, como ele costuma afirmar. Graças aos devaneios que vendeu ao mercado, ele se tornou o sétimo homem mais rico do mundo e passou a integrar a elite global dos negócios. Teve muitos lucros, colheu muitos louros e só quebrou de forma tão fragorosa porque, ao se julgar alguém iluminado e especial, cometeu erros demais. Estamos falando, porém, de um empresário experiente nos meandros do mercado financeiro, que já lidou no passado com mercados até mais regulados e restritos do que o brasileiro, e sabe que não poderia ter conduzido os negócios e a relação com o mercado da forma como fez. Como qualquer outro em sua condição, ele certamente terá de pagar pelos prejuízos que causou.

Desde cedo, ao abandonar a faculdade na Alemanha e hipotecar um apartamento da família na Bélgica, ao entrar no negócio nebuloso do ouro no Brasil, Eike já demonstrava possíveis defeitos de caráter que ficariam mais evidentes no futuro, na condução duvidosa de suas empresas?

 Digo no prólogo que Eike sempre foi o mesmo, as circunstâncias é que mudaram. O Eike dos anos 80 e 90 tinha traços de personalidade e um modus operandi que podiam ser perigosos num contexto de confiança exagerada e exuberância irracional como o vivido pelo Brasil a partir de 2006.  A realidade mostrou que não eram só perigosos, mas fatais.

Que revelações você considera mais relevantes no livro?

A principal, sem dúvida, é que Eike foi alertado para o fato de que estava divulgando dados fantasiosos ao mercado e mesmo assim prosseguiu mentindo. Mostramos isso não apenas com relatos de episódios concretos, mas também com documentos. Tudo ou Nada traz, ainda, outras passagens interessantes e desconhecidas do público: a história real da aventura amazônica de Eike nos anos 80; detalhes de sua ascensão e queda no Canadá; as negociações com a Petrobras para a formação da Termoluma, a usina que o tirou da lama;  seu primeiro contato com o PT e a política dos “empresários amigos”;  bastidores da relação com os bancos durante o seu maior IPO, o da OGX;  a confirmação de que o edital de licitação de uma ferrovia arrematada pelo grupo X no Amapá foi escrito nos computadores de suas empresas; os bastidores de sua tentativa de comprar a Vale; os bastidores de sua promíscua relação com políticos como Sérgio Cabral e Lula;  detalhes sobre o esforço do ex-presidente e do governo Dilma para salvá-lo da derrocada.

No livro, vemos que houve uma verdadeira farra com as ações das empresas do grupo X na Bolsa e que muitos executivos saíram do barco milionários, seja por causa dos bônus que receberam ou pelos ganhos com as ações, fora os salários superdimensionados e acima dos praticados no mercado. A bolha do grupo X beneficiou poucos e deixou muita gente a ver navios, como os investidores menores e os funcionários de empreendimentos que não deram certo. O que o Brasil pode aprender e aprimorar para que mais histórias assim não se repitam?

A missão primeira é reforçar os controles sobre o mercado, tornando as regras para a entrada de empresas na bolsa mais estritas e colocando mais responsabilidade sobre os ombros dos órgãos reguladores. Autarquias como a CVM ou a ANP têm de ser incentivadas a agir com rigor diante de possíveis irregularidades, e as punições não podem ficar só em multas irrisórias para os exorbitantes padrões de ganhos dos especuladores.  O crime financeiro no Brasil sempre compensou. Espero que o caso de Eike Batista e das empresas X sirva para romper com essa cultura de leniência e favorecer a formação de um mercado de capitais mais justo, em que pequenos investidores possam se sentir confortáveis para aplicar sua poupança, financiando o crescimento de toda a economia.